Recentemente terminei a leitura de Ensaio Sobre a Cegueira, do autor português José Saramago, um livro de 1995. A história acompanha um grupo de pessoas durante os acontecimentos provocados por uma doença misteriosa que deixa as pessoas cegas e se alastra como que por contágio. Em certo nível, é impossível não fazer paralelos com a pandemia de Covid-19. Para mim fica bastante claro que, com a obra, o autor quer imaginar e compartilhar uma ideia de sociedade entregue às necessidades de sobrevivência mais animalescas do ser humano, e a isso, pelo que entendi, deve-se a palavra “ensaio” do título. Alguns trechos são bem difíceis de ler, não porque são chatos ou coisas do tipo, mas pelo peso e podridão do que está sendo descrito.

O texto do livro é organizado de uma maneira que eu jamais li em qualquer outra obra. O autor basicamente usa apenas pontos e vírgulas, não usa travessões e nem interrogações. Além disso, os diálogos dos personagens se misturaram com falas do narrador e uma frase iniciada com letra maiúscula, por muitas vezes, indica uma distinção entre quem está falando. No começo achei estranho e, inclusive, fiz uma pesquisa rápida no Kindle em busca de uma versão mais familiar para mim, também porque notei que várias palavras estavam em português de Portugal. Não achei, mas já estava bem adaptado à leitura depois de algumas páginas. Esse formato, embora muito diferente para meus costumes, deixa a leitura fluída e coloca alguma dificuldade para leitor pular pedaços da história.

Deixe estar só um bocadinho, pediu a rapariga dos óculos escuros, as palavras ganharam clareza, Não são notícias, disse a mulher do médico, e depois, como uma ideia que lhe tivesse ocorrido, de repente, Que horas serão isto, perguntou, mas já sabia que ninguém poderia responder-lhe.

Não tinha chegado nas 100 páginas das mais de 300 e o pensamento mais forte era o desejo de saber como aquilo tudo ia terminar. Em nenhum momento foi cogitada na história algum motivo sobrenatural. Sem qualquer contexto anterior sobre a obra, além de saber que todo mundo fica cego, por algum tempo esperei ler numa página as razões pelas quais tudo aquilo acontecia, como se eu estivesse em alguma ficção científica barata. Não foi explicado. A cegueira simplesmente veio. Cheguei no final. O encerramento convém para tudo que foi construído e, sem pesquisas mais profundas, diria que o autor escreveu com o final premeditado. Fiquei bastante satisfeito.

Embora a versão que li seja publicada por uma editora brasileira, nas últimas páginas, um aviso: por desejo do autor, foi mantida a ortografia vigente em portugal. As palavras escritas com “c” não atrapalham, como em “facto”, entre outras diferenças, como os vários substantivos incomuns para mim aqui no Brasil. Neste ponto, contei com a sorte de ser falante nativo de português na versão melhorada, a brasileira, e assim, pude ler esta obra diretamente das palavras do autor, sem traduções ou adaptações na visão de outra pessoa. Fiquei contente, afinal, por não encontrar uma versão abrasileirada do texto quando procurei no inicio das minhas leituras. José Saramago é um ganhador do Nobel de Literatura e do Prêmio Camões; depois de ler Ensaio Sobre a Cegueira, é possível imaginar com certa facilidade algumas das razões pelas quais ele mereceu essas honras.

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Last Update: 07/04/2025